Por
Ana Maria Brambilla (*)
Há tempo um fato não repercutia tão polemicamente no meio jornalístico: no auge da cobertura do desastre aéreo com o vôo JJ 3054 da TAM, no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, o UOL publica a imagem de uma pessoa se jogando do alto do hangar da companhia aérea em meio às chamas. O conteúdo teria sido enviado por um internauta que atendia ao chamado do portal: "Você manda: a tragédia em Congonhas". Vinte e oito minutos mais tarde, outro (?) internauta alerta o UOL de que se tratava apenas de uma montagem e que o a cena do corpo caindo naquela foto não passava de um trabalho amador em Photoshop. O portal admitiu o erro publicamente e retirou a imagem do ar - e ainda levou um puxão de orelha da ombudsman Tereza Rangel. Pelo menos!
O episódio provocou questionamentos sobre a eficácia do jornalismo colaborativo e despertou uma certa alegria vingativa nos coleguinhas cabeças-de-papéis que não acreditam que cada cidadão possa ser um repórter. Era possível sentir o clima de "Eu avisei! O público só faz besteira. Quem diz a verdade somos nós, jornalistas!".
É bom lembrar, no entanto, que aquela imagem não foi parar na homepage do UOL pelas mãos de um internauta. Mas de um jornalista. Ou ao menos deveria! O conteúdo produzido pelo usuário pedido pelo UOL nessa tentativa mambembe de jornalismo colaborativo não era publicado imediatamente. E isso está correto! É preciso que haja o olhar do jornalista antes de um conteúdo ser veiculado. Olhar esse que consiste em checagem de informações e edição. É simples! São duas funções que qualquer jornalista deve - ou deveria - saber desempenhar. Principalmente quando se trata de UGC (user generated content ou, no português, conteúdo gerado pelo usuário). Esses dois processos justificam a importância e a necessidade do profissional no jornalismo colaborativo. E foram esses dois processos que, claramente, foram negligenciados pela redação nesta trapalhada do UOL.
Faltou jornalista. Faltou olhar clínico. Faltou humildade para pedir ajuda a fotógrafos, designers e cinegrafistas. Faltou a tal vigilância que a imprensa tanto se orgulha de ter perante a origem das informações. Faltou competência. E sobrou afobação.
Reparem nesse trecho em que Tereza Rangel relata como aconteceu a correção:
"Diante desses avisos (dos internautas apontando a farsa), a redação consultou a Gerência de Interface do UOL. Na opinião deles, parecia ser uma fotomontagem e merecia investigação. Assim, a equipe de UOL Fotoblog passou a olhar álbuns da concorrência em busca de alguma foto que se assemelhasse a essa (ou seja, tirada por outra pessoa de um outro ângulo) ou que fosse idêntica, exceto por alguns detalhes (ou seja, a foto original sobre a qual teria sido feita a fotomontagem). A redação descobriu uma foto idêntica à enviada pelo internauta, exceto pela imagem do corpo que caía."
Ah, então a Gerência de Interface do UOL soube constatar a fotomontagem? Então a equipe do UOL se prestou a pesquisar álbuns da concorrência? E não é que a redação descobriu uma foto idêntica, mas sem o corpo? Então apuração é algo possível! Por que não foi feita ANTES da veiculação?
Outro detalhe: o UOL sequer se deu ao trabalho de checar no Google quais as referências do dito autor daquela foto. Identificado aleatoriamente por "Junior Ferrarye", esse sujeito simplesmente não existe para o maior buscador de conteúdos na Rede. Dar um Google no cara e encontrar nenhum resultado não é um procedimento cabal, mas serve ao menos para levantar suspeitas sobre a veracidade da identidade desse colaborador.
E vejam que curioso: quando procurei o nome no Orkut, o sistema me deu acesso ao perfil de um certo Leandro Jönk, que assim se apresenta: "Quem sou eu: fake!".
Essa total falta de aptidão - e até de uma certa malícia - para trabalhar com conteúdo colaborativo por parte do UOL, infelizmente, não me surpreende. Desde que ouvi a diretora de conteúdo do portal, Márion Strecker, comparar jornalismo colaborativo a um "show de calouros" (nas suas palavras!), fica clara a postura de um veículo que, apesar de ser nato da Internet, pensa papel.
E pensar papel é manter como norte a arrogância do jornalista como dono absoluto do poder de fala. É não reconhecer no público o potencial de melhorar o nível de jornalismo, seja enviando conteúdos de qualidade, seja aguçando a capacidade do jornalista gerenciar um espaço editorial. É ver o cidadão repórter como concorrente, não como aliado.
Aliados, a propósito, são conquistados com o tempo, com confiança mútua e interesse de ambas as partes. Se o UOL não quis ao menos saber quem era seu colaborador, não merece a sua seriedade.
Longe de mim achar correta a atitude deste cidadão-repórter-zombeteiro. Mas, infelizmente, espíritos de porcos estão por toda a parte. E no ciberespaço também. Quero dizer, com isso, que não apenas noticiários colaborativos online estão suscetíveis a receber informações falsas. Aliás, não apenas a mídia colaborativa pode veicular inverdades. Caso contrário, Jason Blair não seria a vergonha da história de um dos jornais mais críveis do mundo, o The New York Times.
Identificar, checar, apurar, confirmar, pesquisar, desconfiar, editar, conversar... Isso toma tempo e dá trabalho! Mas acaba sendo tão oneroso quanto fundamental para a decência de um espaço de conteúdo colaborativo.
É possível entender, assim, que jornalismo colaborativo dá muito mais trabalho ao profissional de imprensa do que o jornalismo tradicional?
É possível se dar conta de que não é qualquer jornalista que pode trabalhar com conteúdo colaborativo e que, para isso, deve-se ter todo um preparo, uma visão específica do processo?
É possível, por fim, admitir que jornalistas profissionais, bem preparados nunca foram tão necessários e que o fato de cada cidadão ser um repórter não significa que precisemos rasgar nossos diplomas?
O vexame dado pelo UOL foi extremamente útil para nos provocar esses questionamentos. O saldo me parece: mais do que comprovar que o UOL não sabe fazer jornalismo colaborativo, ficou claro que a colaboração funciona! Especialmente porque o erro foi apontado pelos próprios internautas. Basta ter jornalistas competentes e ouvir o que o público diz.
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Ana Brambilla é jornalista, mestre em Comunicação e editora assistente de conteúdo colaborativo na Editora Abril.